quinta-feira, 2 de abril de 2009

Terras e direitos humanos

Uma inusitada ação civil pública foi ajuizada perante a justiça federal de Belém, no final do ano, contra o Estado do Pará, o Iterpa, a União e uma empresa privada. Se for acolhida integralmente, resultará no pagamento de indenização aos demandantes no valor de 200 milhões de reais, dentre outras conseqüências. Moradores de Portel, com o apoio da prefeitura municipal, alegam a violação dos seus direitos humanos pela venda fraudulenta de terras públicas ao grupo empresarial ABC. O Iterpa teria praticado uma autêntica grilagem oficial, transferindo de forma ilícita área do patrimônio público habitada há várias gerações por nativos, que, a partir daí, passaram a ser perseguidos e expulsos de suas glebas.

A ação foi proposta 30 anos depois da realização da venda. Depois de tanto tempo decorrido, o fato gerador já estaria prescrito, fora do alcance do questionamento judicial. Mas os patrocinadores da causa alegam que essa restrição não se aplica ao caso porque argúem violação a direitos humanos, que são imprescritíveis. Por isso, estão dispostos a recorrer à corte internacional se a demanda não for acolhida pela justiça brasileira. Usarão como fundamento tratados e convenções internacionais, dos quais o Brasil, como signatário, se comprometeu a reconhecer.

A longa peça, de 52 páginas, acrescida de numerosos anexos documentais, deverá provocar uma rica polêmica, se a ação realmente for acolhida pela justiça. Independentemente da instrução que seguir, ela renova a atenção — embora tão tardiamente — sobre um fato importante na história fundiária do Pará. Surpreende que a questão só esteja sendo suscitada depois de tanto tempo, já que na época o fato foi noticiado, comentado e criticado na imprensa, ainda que apenas por uma pequena fração dela. Antes de avaliar o questionamento judicial propriamente dito, convém rememorar esse episódio. Essa revisão poderá contribuir para prevenir ou purgar novos erros semelhantes, que estão sendo repetidos.

A ação ataca aquela que foi a primeiras discriminatórias de terras feita no Estado. Até então o governo simplesmente servia de instrumento às iniciativas dos particulares interessados no seu patrimônio fundiário. Uma pessoa requeria determinada área, indicando-a ao órgão público, que procedia como se fora um corretor imobiliário. Durante certo tempo houve um rendoso comércio de meros requerimentos, que passavam de mão antes de qualquer ato oficial. O Estado fazia de conta que providenciava a verificação no local e o particular simulava seriedade na identificação física do terreno. Tudo, porém, não passava se simulação no papel. Daí a expedição de títulos sobre uma mesma área ou com localização muito diferente da declarada. Como resultado, a confusão, o caos, a grilagem.

Em 1976 o governo federal conseguiu aprovar uma lei (a 6.383) regulamentando a ação discriminatória de terras da União. O Conselho de Segurança Nacional, que a inspirara, praticamente interveio no Iterpa, designando para presidi-lo Íris Pedro de Oliveira, que já atuara no Incra no Pará. Com uma linguagem de tecnocrata e anunciador de novos tempos, ele chegou para mudar os procedimentos do passado, que eram uma das causas dos graves problemas fundiários do Pará. O ponto de partida foram quatro discriminatórias: Joana Peres I e II, e Altamira I e II, no vale do Xingu.

Graças às duas primeiras, o grupo ABC tangenciou duas vezes as leis para conseguir formar uma das maiores propriedades rurais da Amazônia e receber incentivos fiscais da Sudam. O grupo adquiriu 58 lotes de terras, totalizando 127 mil hectares (área equivalente à do antigo Estado da Guanabara), na concorrência pública aberta pelo Iterpa em 1978. Como a legislação fundiária impedia a venda de áreas superiores a três mil hectares sem a aprovação prévia do Senado, o grupo econômico requereu os lotes através de 58 pessoas diferentes, sobretudo membros da família Garcia, controladora do conglomerado empresarial.

Em julho de 1978 o grupo pagou metade do preço de cada um dos lotes (a um baixo valor, entre 150 e 300 cruzeiros — da época — por hectare) e recebeu os títulos definitivos de propriedade. A expedição desses títulos foi irregular: como o Iterpa impunha ao comprador o atendimento de certas exigências, ao invés de um documento definitivo de propriedade, devia ter expedido um título provisório, que substituiria quando os compromissos fossem atendidos.

Eram três as exigências estabelecidas na licitação: implantação de um projeto de aproveitamento econômico da área, a ser previamente submetido ao Iterpa; em dois anos, 10% das metas do projeto deviam estar executados; e o lote teria que ser demarcado nesse período. Se essas condições não fossem atendidas, o título seria cancelado e as terras reverteriam ao patrimônio público, evitando-se, assim, seu uso especulativo.

As irregularidades, no entanto, começaram já na divisão do Loteamento Joana Peres, em uma área praticamente inexplorada de mata densa, a dois grupos econômicos: o ABC e o Alair Martins. Para tangenciar a lei, os arrematantes se utilizaram de prepostos e o Iterpa referendou a burla ao admitir, na regularização da titulação, que o grupo ABC substituísse os requerentes individuais dos lotes. Embora os processos tivessem sido formados nos nomes de pessoas físicas, o grupo ABC (Agropecuária Brasil Central) foi quem assumiu a titularidade da área, já então com a razão social de ABN (Agropecuária Brasil Norte). E agrupou os lotes individuais, de 1,5 mil a 3 mil hectares, numa propriedade única, ignorando o projeto de uso de cada uma delas.

Em 1984 o Iterpa fez uma vistoria na área e constatou que a empresa se limitara a formar uma pastagem de 1,3 mil hectares, dos 5 mil que anunciara, a realizar alguns cultivos agrícolas e a extrair madeira à margem do rio. Não ocupava nem 5% da área total. Também não realizara a demarcação do terreno. Essas inadimplências autorizavam o instituto a cancelar os títulos e reaver as terras. Mas o Iterpa dizia não ter dinheiro para pagar a indenização e receava as complicações jurídicas da decisão.

Ao invés de expedir um título provisório, que seria substituído por um documento definitivo quando as condições estabelecidas em contrato fossem satisfeitas, o Iterpa concedera título definitivo com cláusula resolutiva. Para os efeitos legais, as condicionantes não teriam força para sustar a transferência definitiva das terras para o particular beneficiado pelo título, que fizera o registro no cartório imobiliário como propriedade plena.

Mesmo sem concluir a titulação, porém, o grupo ABC conseguiu com as terras a aprovação da Sudam, em 1983, de um projeto madeireiro e pecuário de 1,1 bilhão de cruzeiros (valor da época) para a criação de 3,1 mil cabeças de gado em 5 mil hectares de pastagem, e a produção de 6,6 mil metros cúbicos de madeira beneficiada. A aprovação do projeto na Sudam foi acidentada: já estava em vigor uma resolução do próprio órgão proibindo incentivos fiscais para fazenda a ser instalada em área de floresta nativa. Era exatamente o caso. Só num dos lotes vendidos pelo Iterpa foram identificados três mil pés de sucupira, árvore de grande valor comercial. Como o Departamento de Recursos Naturais se recusava a aprovar pecuária em área de floresta densa, a superintendência simplesmente enviou o projeto diretamente ao Conselho Deliberativo, sem submetê-lo ao seu próprio órgão técnico, que certamente o vetaria.

Essa história volta novamente ao público com a ação civil pública. O estranho é o pedido de indenização, de 200 milhões de reais, para os ribeirinhos que teriam perdido duas terras e foram vítimas de violência por parte da empresa. Era de se esperar que uma iniciativa desse tipo visasse o benefício direto dos seus autores para que se mantivessem nas suas áreas, ou nelas fossem restabelecidos, com apoio do governo para suas atividades produtivas e a restauração do que perderam. E não a divisão do valor da indenização entre a prefeitura de Portel (que ficaria com 70%), a Associação dos Trabalhadores Agro-Extrativistas do Alto Camarapi (15%) e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (15%).

Para levar a esses objetivos, a alegação da violação dos direitos humanos pode ser reconhecida como causa interruptiva da prescrição, passados 30 anos da venda das terras sem qualquer ação ou um protesto judicial que fosse para anulá-la ou ao menos contestá-la. O pedido de indenização em dinheiro, ao invés de remeter para um arbitramento internacional, sujeita a ação às normas da legislação cível brasileira, na qual é muito mais problemático argüir a imprescritibilidade do ato do Iterpa, em nome do Estado.

A ação é de boa inspiração e propósito ao empunhar os direitos humanos dos antigos moradores da região, mas devia prosseguir na linha de conduta que já recebeu a acolhida do juiz da comarca, Roberto Valois, que deferiu a pretensão dos ribeirinhos contra a empresa, conforme a própria ação informa, num contencioso que só veio a se estabelecer em 2002, a partir de uma demanda possessória da ABC e não dos moradores (que, se defendendo, conseguiram a tutela judicial). Ela podia também cobrar um efeito declaratório do dano acarretado pelo Estado ao fazer uma titulação leviana. Podia até mostrar a contradição dos atuais condutores do Iterpa, que combateram a legislação autoritária e agora utilizam um dos seus dispositivos mais draconianos, contido no artigo 28 da lei 6.383, de 1976.

Esse instrumento permite a arrecadação sumária de áreas consideradas desocupadas, bastando ao órgão arrecadador verificar os registros e transcrições imobiliárias. A consulta é feita nos mesmos cartórios apontados como coniventes com a grilagem, com seus assentamentos inconfiáveis. Além disso, a exigência de demarcação pressupõe a identificação física da área e não apenas uma pesquisa em papéis. A indefinição de ontem perdura e é negativa, ainda que agora se aleguem bons propósitos em favor de moradores tradicionais e quilombolas. Os autores da ação de Portel usam esse argumento contra seus defensores, que agora dirigem o Iterpa. A contradição, porém, não autoriza a cobrança da elevada indenização. O Estado não pode ficar com a cabeça sujeita ao cutelo dos justiçadores indefinidamente. Há uma ordem legal a se impor para distinguir o plano da reparação histórica do ressarcimento material. Os ribeirinhos merecem a justiça reparadora, mas chegar à indenização — e no valor estabelecido — parece um excesso, que se estabelece diante do silêncio dos representantes do Estado diante de questão dessa importância.

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FONTE:Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006) e Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007).

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