quinta-feira, 2 de abril de 2009

Terras e direitos humanos

Uma inusitada ação civil pública foi ajuizada perante a justiça federal de Belém, no final do ano, contra o Estado do Pará, o Iterpa, a União e uma empresa privada. Se for acolhida integralmente, resultará no pagamento de indenização aos demandantes no valor de 200 milhões de reais, dentre outras conseqüências. Moradores de Portel, com o apoio da prefeitura municipal, alegam a violação dos seus direitos humanos pela venda fraudulenta de terras públicas ao grupo empresarial ABC. O Iterpa teria praticado uma autêntica grilagem oficial, transferindo de forma ilícita área do patrimônio público habitada há várias gerações por nativos, que, a partir daí, passaram a ser perseguidos e expulsos de suas glebas.

A ação foi proposta 30 anos depois da realização da venda. Depois de tanto tempo decorrido, o fato gerador já estaria prescrito, fora do alcance do questionamento judicial. Mas os patrocinadores da causa alegam que essa restrição não se aplica ao caso porque argúem violação a direitos humanos, que são imprescritíveis. Por isso, estão dispostos a recorrer à corte internacional se a demanda não for acolhida pela justiça brasileira. Usarão como fundamento tratados e convenções internacionais, dos quais o Brasil, como signatário, se comprometeu a reconhecer.

A longa peça, de 52 páginas, acrescida de numerosos anexos documentais, deverá provocar uma rica polêmica, se a ação realmente for acolhida pela justiça. Independentemente da instrução que seguir, ela renova a atenção — embora tão tardiamente — sobre um fato importante na história fundiária do Pará. Surpreende que a questão só esteja sendo suscitada depois de tanto tempo, já que na época o fato foi noticiado, comentado e criticado na imprensa, ainda que apenas por uma pequena fração dela. Antes de avaliar o questionamento judicial propriamente dito, convém rememorar esse episódio. Essa revisão poderá contribuir para prevenir ou purgar novos erros semelhantes, que estão sendo repetidos.

A ação ataca aquela que foi a primeiras discriminatórias de terras feita no Estado. Até então o governo simplesmente servia de instrumento às iniciativas dos particulares interessados no seu patrimônio fundiário. Uma pessoa requeria determinada área, indicando-a ao órgão público, que procedia como se fora um corretor imobiliário. Durante certo tempo houve um rendoso comércio de meros requerimentos, que passavam de mão antes de qualquer ato oficial. O Estado fazia de conta que providenciava a verificação no local e o particular simulava seriedade na identificação física do terreno. Tudo, porém, não passava se simulação no papel. Daí a expedição de títulos sobre uma mesma área ou com localização muito diferente da declarada. Como resultado, a confusão, o caos, a grilagem.

Em 1976 o governo federal conseguiu aprovar uma lei (a 6.383) regulamentando a ação discriminatória de terras da União. O Conselho de Segurança Nacional, que a inspirara, praticamente interveio no Iterpa, designando para presidi-lo Íris Pedro de Oliveira, que já atuara no Incra no Pará. Com uma linguagem de tecnocrata e anunciador de novos tempos, ele chegou para mudar os procedimentos do passado, que eram uma das causas dos graves problemas fundiários do Pará. O ponto de partida foram quatro discriminatórias: Joana Peres I e II, e Altamira I e II, no vale do Xingu.

Graças às duas primeiras, o grupo ABC tangenciou duas vezes as leis para conseguir formar uma das maiores propriedades rurais da Amazônia e receber incentivos fiscais da Sudam. O grupo adquiriu 58 lotes de terras, totalizando 127 mil hectares (área equivalente à do antigo Estado da Guanabara), na concorrência pública aberta pelo Iterpa em 1978. Como a legislação fundiária impedia a venda de áreas superiores a três mil hectares sem a aprovação prévia do Senado, o grupo econômico requereu os lotes através de 58 pessoas diferentes, sobretudo membros da família Garcia, controladora do conglomerado empresarial.

Em julho de 1978 o grupo pagou metade do preço de cada um dos lotes (a um baixo valor, entre 150 e 300 cruzeiros — da época — por hectare) e recebeu os títulos definitivos de propriedade. A expedição desses títulos foi irregular: como o Iterpa impunha ao comprador o atendimento de certas exigências, ao invés de um documento definitivo de propriedade, devia ter expedido um título provisório, que substituiria quando os compromissos fossem atendidos.

Eram três as exigências estabelecidas na licitação: implantação de um projeto de aproveitamento econômico da área, a ser previamente submetido ao Iterpa; em dois anos, 10% das metas do projeto deviam estar executados; e o lote teria que ser demarcado nesse período. Se essas condições não fossem atendidas, o título seria cancelado e as terras reverteriam ao patrimônio público, evitando-se, assim, seu uso especulativo.

As irregularidades, no entanto, começaram já na divisão do Loteamento Joana Peres, em uma área praticamente inexplorada de mata densa, a dois grupos econômicos: o ABC e o Alair Martins. Para tangenciar a lei, os arrematantes se utilizaram de prepostos e o Iterpa referendou a burla ao admitir, na regularização da titulação, que o grupo ABC substituísse os requerentes individuais dos lotes. Embora os processos tivessem sido formados nos nomes de pessoas físicas, o grupo ABC (Agropecuária Brasil Central) foi quem assumiu a titularidade da área, já então com a razão social de ABN (Agropecuária Brasil Norte). E agrupou os lotes individuais, de 1,5 mil a 3 mil hectares, numa propriedade única, ignorando o projeto de uso de cada uma delas.

Em 1984 o Iterpa fez uma vistoria na área e constatou que a empresa se limitara a formar uma pastagem de 1,3 mil hectares, dos 5 mil que anunciara, a realizar alguns cultivos agrícolas e a extrair madeira à margem do rio. Não ocupava nem 5% da área total. Também não realizara a demarcação do terreno. Essas inadimplências autorizavam o instituto a cancelar os títulos e reaver as terras. Mas o Iterpa dizia não ter dinheiro para pagar a indenização e receava as complicações jurídicas da decisão.

Ao invés de expedir um título provisório, que seria substituído por um documento definitivo quando as condições estabelecidas em contrato fossem satisfeitas, o Iterpa concedera título definitivo com cláusula resolutiva. Para os efeitos legais, as condicionantes não teriam força para sustar a transferência definitiva das terras para o particular beneficiado pelo título, que fizera o registro no cartório imobiliário como propriedade plena.

Mesmo sem concluir a titulação, porém, o grupo ABC conseguiu com as terras a aprovação da Sudam, em 1983, de um projeto madeireiro e pecuário de 1,1 bilhão de cruzeiros (valor da época) para a criação de 3,1 mil cabeças de gado em 5 mil hectares de pastagem, e a produção de 6,6 mil metros cúbicos de madeira beneficiada. A aprovação do projeto na Sudam foi acidentada: já estava em vigor uma resolução do próprio órgão proibindo incentivos fiscais para fazenda a ser instalada em área de floresta nativa. Era exatamente o caso. Só num dos lotes vendidos pelo Iterpa foram identificados três mil pés de sucupira, árvore de grande valor comercial. Como o Departamento de Recursos Naturais se recusava a aprovar pecuária em área de floresta densa, a superintendência simplesmente enviou o projeto diretamente ao Conselho Deliberativo, sem submetê-lo ao seu próprio órgão técnico, que certamente o vetaria.

Essa história volta novamente ao público com a ação civil pública. O estranho é o pedido de indenização, de 200 milhões de reais, para os ribeirinhos que teriam perdido duas terras e foram vítimas de violência por parte da empresa. Era de se esperar que uma iniciativa desse tipo visasse o benefício direto dos seus autores para que se mantivessem nas suas áreas, ou nelas fossem restabelecidos, com apoio do governo para suas atividades produtivas e a restauração do que perderam. E não a divisão do valor da indenização entre a prefeitura de Portel (que ficaria com 70%), a Associação dos Trabalhadores Agro-Extrativistas do Alto Camarapi (15%) e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (15%).

Para levar a esses objetivos, a alegação da violação dos direitos humanos pode ser reconhecida como causa interruptiva da prescrição, passados 30 anos da venda das terras sem qualquer ação ou um protesto judicial que fosse para anulá-la ou ao menos contestá-la. O pedido de indenização em dinheiro, ao invés de remeter para um arbitramento internacional, sujeita a ação às normas da legislação cível brasileira, na qual é muito mais problemático argüir a imprescritibilidade do ato do Iterpa, em nome do Estado.

A ação é de boa inspiração e propósito ao empunhar os direitos humanos dos antigos moradores da região, mas devia prosseguir na linha de conduta que já recebeu a acolhida do juiz da comarca, Roberto Valois, que deferiu a pretensão dos ribeirinhos contra a empresa, conforme a própria ação informa, num contencioso que só veio a se estabelecer em 2002, a partir de uma demanda possessória da ABC e não dos moradores (que, se defendendo, conseguiram a tutela judicial). Ela podia também cobrar um efeito declaratório do dano acarretado pelo Estado ao fazer uma titulação leviana. Podia até mostrar a contradição dos atuais condutores do Iterpa, que combateram a legislação autoritária e agora utilizam um dos seus dispositivos mais draconianos, contido no artigo 28 da lei 6.383, de 1976.

Esse instrumento permite a arrecadação sumária de áreas consideradas desocupadas, bastando ao órgão arrecadador verificar os registros e transcrições imobiliárias. A consulta é feita nos mesmos cartórios apontados como coniventes com a grilagem, com seus assentamentos inconfiáveis. Além disso, a exigência de demarcação pressupõe a identificação física da área e não apenas uma pesquisa em papéis. A indefinição de ontem perdura e é negativa, ainda que agora se aleguem bons propósitos em favor de moradores tradicionais e quilombolas. Os autores da ação de Portel usam esse argumento contra seus defensores, que agora dirigem o Iterpa. A contradição, porém, não autoriza a cobrança da elevada indenização. O Estado não pode ficar com a cabeça sujeita ao cutelo dos justiçadores indefinidamente. Há uma ordem legal a se impor para distinguir o plano da reparação histórica do ressarcimento material. Os ribeirinhos merecem a justiça reparadora, mas chegar à indenização — e no valor estabelecido — parece um excesso, que se estabelece diante do silêncio dos representantes do Estado diante de questão dessa importância.

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FONTE:Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006) e Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007).

Ribeirinhos querem a posse de terras

Área está nas mãos de agropecuária. E caso vai ser decidido pela Justiça Federal.

Carlos Mendes

O juiz federal substituto da 5ª Vara de Belém, Antonio Carlos Almeida Campelo, decidiu que a Justiça Federal é competente para processar e julgar ação civil pública, com antecipação de tutela, em que populações tradicionais de Portel e a prefeitura do município pleiteiam a suspensão dos registros imobiliários de 100 mil hectares de terras da área conhecida por gleba Joana Peres 1. As famílias também cobram a realização de ação discriminatória e, definidas as posses, o cancelamento dos registros de imóveis emitidos pelo Instituto de Terras do Pará (Iterpa) em nome da empresa Agropecuária Brasil Norte S.A. Produção e Exportação (ABC), hoje estabelecida na área ao longo dos rios Camarapi e Pacajá.

Segundo Campelo, a competência federal se estabelece em face da necessidade de a União integrar a lide no pólo passivo, 'pelo fato de ser discutida possível apropriação indevida de terras públicas federais'. O juiz também determinou a intimação dos réus - Estado e ABC - para se manifestarem no prazo de dez dias acerca do pedido de tutela antecipada. E marcou a primeira audiência para o próximo dia 29 de abril. A causa da ação está avaliada em R$ 200 milhões, mas esse valor será definido pela própria Justiça no final do processo.

O advogado Ismael Moraes, defensor dos ribeirinhos, invoca a imprescritibilidade dos direitos humanos para anular a venda das terras, feita em 1974. As famílias querem ser indenizadas por danos morais coletivos e exigem do Iterpa a emissão a seu favor dos títulos definitivos das posses que forem identificadas no processo discriminatório. Perguntado se o caso irá correr com celeridade na Justiça Federal, Moraes respondeu que a decisão do juiz Antonio Carlos Campelo 'foi admirável', pois, de uma só vez, determinou várias providências, 'atendendo ao cunho social e humano de uma causa que envolve mais de 500 famílias de ribeirinhos'.

Denúncia
Enquanto Moraes concedia entrevista, os ribeirinhos de Portel procuravam a imprensa para denunciar ameaças e perseguições na área, inclusive de pistoleiros e policiais militares armados. A acusação recai sobre a empresa madeireira Cikel, tida como exemplo de respeito ao meio ambiente e de ter selo internacional em seus planos de manejo. Um dos denunciantes, Rosemiro Gomes Ferreira, declarou em depoimento na Corregedoria da Polícia Militar que teve arma apontada contra ele por policiais militares e proibido de cortar madeira. 'Fui ameaçado por dois pistoleiros a serviço da Cikel. Eles disseram que se eu falasse alguma coisa iria morrer', diz.

Outro ribeirinho, Hernandes do Amaral, também confirmou as ameaças, apontando que no meio da operação feita por militares na região estavam três funcionários da Cikel de nomes Manoel Glória, Bertolino e outro de apelido Doçura. 'Os PMs invadiram minha casa, dizendo que estavam procurando drogas e de um homem chamado Nicanor'. Outras pessoas também afirmaram ter sofrido ameaças e intimidação por parte da Cikel e de policiais militares.

Caso será denunciado a tribunais internacionais de direitos humanos
O caso das terras de Portel será levado aos tribunais internacionais de direitos humanos, anunciou o advogado Ismael Moraes. Ele acusa o Estado - por intermédio da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) e da Polícia Militar, além da União, por meio de fiscais do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) - de promover 'repressão às famílias de ribeirinhos atendendo aos interesses das empresas madeireiras e pecuárias que foram beneficiadas pela fraude perpetrada no Iterpa (Instituto de Terras do Pará)'.

A PM, segundo ele, estava sendo usada como instrumento de pistolagem, embora faça ressalva à 'postura elogiável que a Corregedoria da corporação está tendo diante do problema'. Quinze PMs, entre sargentos, cabos e soldados, acusados de invadir casas, atirar, torturar e tentar expulsar famílias de ribeirinhos foram afastados. Postura idêntica, ataca, não se vê do Iterpa e nem da Procuradoria do Estado, 'que parecem querer defender os interesses das empresas'. 'Aliás, uma coisa que a procuradoria do Iterpa e a Procuradoria do Estado poderiam fazer seria pedir para passarem ao pólo ativo da ação, pois os autores - município de Portel, Sindicato dos Trabalhadores Rurais e Associação dos Trabalhadores Agro-extrativistas - entendem que a autarquia e o Estado não devem responder por atos praticados por agentes corruptos há 30 anos, evitando eventual condenação nos ônus da sucumbência, que serão altos'.

Nesta entrevista, Moraes afirma que defender esses atos até hoje configura improbidade, demonstrando um envolvimento inconfessável dos atuais agentes públicos com as empresas. 'Fiquei impressionado com a tranqüilidade do sr. Girolamo Trecani ao defender que as terras ocupadas pelas famílias são propriedade da empresa ABC, quando no seu livro ‘Violência e Grilagem’ ele diz exatamente o contrário. Esse livro será juntado aos autos do processo como prova', critica. Veja a entrevista a seguir:

Denúncias vindas de Portel apontam a presença de pistoleiros e policiais militares fardados que estariam a serviço das empresas ABC e Cikel, promovendo ameaças e expulsão de ribeirinhos das terras que são objeto da ação civil pública. O que o senhor pretende fazer?

Atualmente, os PMs que participavam dessa pistolagem foram afastados pela Corregedoria. Mas tem havido incursões intimidatórias de pistoleiros armados com pistolas automáticas e escopetas calibre 12 nas terras das famílias. Também algumas lideranças locais, como os representantes do sindicato e da associação, a vereadora Simone Moura e o engenheiro florestal Luciano Fonseca receberam telefonemas anônimos advertindo que deveriam 'se cuidar'. Estas duas pessoas são algumas das testemunhas que serão ouvidas na audiência designada pelo dr. Antonio Carlos de Almeida Campelo, juiz federal da 5ª Vara Federal. Talvez isso seja um modo de fazê-las demover de prestar seu testemunho. Já as orientei a pedir ao delegado de polícia de Portel a abertura de inquérito. Após a audiência, pedirei ao juiz que nomeie oficial da Justiça Federal para ir à região, a fim de que sejam tomadas providências contra os responsáveis.

O Iterpa alega que estava negociando com as comunidades da região uma solução pacífica quando foi surpreendido pela ação civil pública. O que o senhor tem a dizer sobre isso?

Isso é uma mentira sórdida! Ao contrário, o Iterpa está paralisando, como represália, o processo de criação de uma reserva extrativista que as famílias da região do Baixo Rio Camarapi postularam. A ação proposta diz respeito às regiões do Alto Rio Camarapi e do Rio Pacajá, envolvendo os igarapés Moconha e Candiru. Eles não possuem justificativa séria, daí mentirem. Fico imaginando como essas pessoas conseguem olhar para os demais funcionários que lá trabalham e sabem que elas estão participando desse conluio para prejudicar famílias pobres em favor de grandes empresas.

Quais os próximos passos do processo?
Os réus e o Ministério Público Federal estão sendo intimados para se manifestar acerca dos pedidos de tutela antecipada - paralisação das atividades das empresas ABC e Cikel na região, a fim evitar o exaurimento dos recursos naturais e prejuízos irreversíveis às populações tradicionais - e há audiência de justificação designada para o dia 29 de abril próximo, após o que o juiz decidirá acerca dos pedidos de tutela antecipada. Não sei qual será a posição do MPF, que foi procurado há quase um ano pelas lideranças das comunidades, levadas então pelo vereador Arnaldo Jordy, ocasião em que o procurador da República, Felício Pontes Jr., demonstrou interesse em defendê-las, mas não abriu nenhum procedimento nesse sentido. A Procuradoria da República e o Ministério Público Estadual poderiam integrar o processo como litisconsortes ativos, defendendo as famílias, mas desconheço qualquer ato nesse sentido. Após a apreciação dos pedidos de tutela devem surgir recursos, mormente se o Iterpa e o Estado do Pará continuarem defendendo os interesses das empresas em detrimento da vida de ribeirinhos. (C. M.)

Iterpa prepara defesa e aponta fraude na compra de lotes por empresa
O diretor do Departamento Jurídico do Instituto de Terras do Pará (Iterpa), Flávio Manso, disse que o órgão vai se defender, mas não da maneira como a ação civil pública impetrada por ribeirinhos da área vendida pelo Estado à empresa ABC está posta na Justiça Federal. Três situações serão abordadas na defesa. Primeiro, o Iterpa não entrará no mérito da questão que envolve direitos humanos, tida como ponto pacífico.

'Como se trata claramente de um direito territorial, ele tem ações comuns que fazem valer esse direito, como legitimação de posse e usucapião. Não faz parte da estratégia do Estado enfrentar este tipo de tema'. A preocupação do Iterpa, na opinião de Manso, é 'equacionar o passivo fundiário' de Portel. Em termos jurídicos, afirma o diretor, há indícios de violação à norma constitucional que limitava a alienação de terra da União e do Estado a três mil hectares. A autorização para a venda de terra acima desse limite teria que ser feita pelo Senado.

A violação própria da norma constitucional não prescreve, compreende Manso, que informou ter o Iterpa criado uma comissão para analisar a fraude que permitiu à empresa ABC adquirir mais de 240 mil hectares na região. 'A aquisição foi feita pela interposição de outras pessoas. O ato, portanto, foi inconstitucional', sentencia. O Iterpa, no seu entendimento, poderia, por intermédio do artigo 15 das disposições transitórias da Constituição Estadual, convalidar a venda das terras de Portel e enviar o caso para o Congresso Nacional.

O Estado, adianta, vai defender a licitação, entendendo que se houve fraude ela foi praticada pelo agente privado. 'Os laranjas concentraram essas terras no nome de uma empresa', observa. Agora, se este ato é nulo ou anulável, ele não vê problema nenhum. Caso o Congresso Nacional convalide esse ato, o problema será dele. A Constituição permite que o Estado faça a revisão de todos os títulos de terra expedidos até 1952. Essa revisão só cabe ao próprio Estado.

Esta é a tese principal - a imunidade de jurisdição - a ser defendida na Justiça Federal. De acordo com Manso, não cabe ao Judiciário se pronunciar sobre uma revisão que só o próprio Estado pode e tem competência para fazer. 'Se não houver nenhum problema possessório na área, o Iterpa irá convalidar o título expedido', adianta. Uma coisa, para o chefe do setor jurídico do Iterpa, está clara: houve apropriação de terras a mais daquelas vendidas. Os ribeirinhos estariam no excesso e não na área titulada, resume. Somente perícia irá esclarecer qualquer dúvida.

Nas áreas próximas dos rios da região não houve titulação, garante Manso, com base em levantamento recente feito pelo Iterpa. 'Se as terras não foram tituladas, eles (ribeirinhos) não poderiam estar brigando com a empresa ABC', resume o advogado. Um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre todas as partes envolvidas na disputa poderia ser a solução conciliatória para evitar prejuízo a qualquer dos interessados. (C. M.)

Cikel nega ameaça de expulsão de famílias e de contar com apoio da PM
O advogado Virgílio Floriani, gestor jurídico da Cikel, negou que a empresa esteja ameaçando de expulsão os ribeirinhos e se disse surpreso com as informações de que ela estaria se utilizando de pistoleiros e policiais militares fardados para intimidar as famílias residentes ao longo dos rios Camarapi e Pacajá. 'Não temos esse tipo de prática na empresa. Esse fato é errado', resume. Ele atribui essas denúncias, que garante serem infundadas, à inquietude dos ribeirinhos em ter como resposta uma solução para os problemas que vivem.

Os ribeirinhos afirmam que a Cikel não está permitindo que um pequeno trator da comunidade retire madeira da área para atender às necessidades emergenciais das famílias. Um dos homens supostamente a serviço da empresa teria dito que eles iriam parar de qualquer maneira de explorar madeira, nem que fosse sob balas. Floriani responde à acusação, repetindo não existir nenhum tipo de ameaça contra os ribeirinhos. E acrescenta desconhecer que as famílias utilizem trator, pelo menos nas áreas da Cikel.

Em plano de manejo da empresa, localizado em área distante das comunidades ribeirinhas, o advogado reconhece ter havido uma invasão, mas de madeireiras ilegais. A Cikel comunicou a invasão aos órgãos competentes para que fossem tomadas providências. 'É com um pouco de apreensão e tristeza que a empresa vê essas notícias. A Cikel, ao ter um plano de manejo em Portel, tem como objetivo fomentar o equilíbrio social e a sustentabilidade ambiental da região. Estamos já há algum tempo lutando para estabelecer isso e sempre consideramos os direitos dos ribeirinhos', resume o advogado.

Para a engenheira florestal e gerente de Meio Ambiente da Cikel, Wandréia Baitz, a empresa foi surpreendida duas vezes: primeiro com as informações sobre ameaças inverídicas. Depois, com a própria ação civil pública em nome dos ribeirinhos. 'Nós estamos intermediando uma ação para que haja paz social na área. O importante é que o manejo na nossa área seja feito de forma responsável como tem sido', acrescentou a engenheira.

Em junho do ano passado, a empresa encomendou um diagnóstico da região ao Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Esse diagnóstico vai responder a muitas questões que hoje a empresa desconhece, como, por exemplo, o número exato de famílias que vivem na área.

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Imazon, Fase e Cikel acusados de fraude

Por Carlos Mendes

O Imazon e a Fase apresentaram semana passada em Portel o diagnóstico socioeconômico encomendado pela madeireira Cikel acerca da situação fundiária e ambiental das famílias de populações que vivem, há mais de um século nas terras vendidas pelo Instituto de Terras do Pará (Iterpa), em 1976, à empresa ABC Agropecuária S/A.
Segundo o advogado Ismael Moraes, que defende as famílias ribeirinhas, o diagnóstico "é apenas mais uma fraude comprada pela madeireira Cikel, assim como é seu selo verde, assim como foi comprado um inquérito policial que indiciou as famílias como invasoras de terras, assim como é toda a documentação de propriedade expedida pelo Iterpa.
O diagnóstico, diz Ismael Moraes, suprime e desconsidera a existência não de algumas famílias, mas de comunidades inteiras constatação que, segundo suas palavras, é compartilhada pelos secretários municipais do município de Portel responsáveis pelo acompanhamento do assunto, inclusive o de Meio Ambiente.
Um dos autores da "atual fraude", acusa o advogado, é o pesquisador Paulo Amaral, que em 2003, "em nome do Imazon, tentou aliciar as famílias, prometendo a aprovação de projetos de manejo comunitários caso assinassem contratos de comodato que entregavam as posses das terras à empresa ABC". Afirma também que, após serem flagrados, eles (o Imazon) "desapareceram, reaparecendo agora". Até o momento, o advogado não possui nenhuma versão assinada do diagnóstico, mas afirma que assim que estiver de posse de alguma "imediatamente proporá ação indenizatória contra o Imazon e a Fase em nome das famílias excluídas como se não existissem".

"O GOVERNO INCENTIVA ILEGALIDADE NO SETOR MADEIREIRO

Apenas 20% das 3.000 madeireiras que atuam na Amazônia respeitam as leis ambientais e trabalhistas do país. Dessas, só quinze, o equivalente a 0,5% do total, exercem sua atividade com padrão de excelência que preenche todos os requisitos internacionais de preservação ambiental. Não cortam árvores raras ou jovens e respeitam um intervalo de 25 anos para explorar uma mesma área – medida que permite a regeneração da floresta. Seus empregados dispõem de bons alojamentos, comida e escola para os filhos. Por seguirem esses princípios, receberam o certificado Forest Stewardship Council (FSC), um tipo de ISO 9000 das madeireiras que é conhecido como selo verde. São empresas que deveriam ter atenção especial do governo. Deveriam. Mas elas são as madeireiras mais penalizadas por ele.

Na semana passada, uma das quinze serrarias que tinham o selo verde, a fábrica de compensados Gethal Amazonas, fechou as portas. Motivo? O Ibama protelou a concessão de novas autorizações para que ela extraísse madeira da floresta Amazônica. "Assumimos que as autorizações sairão tarde demais", admite Antonio Carlos Hummel, diretor de florestas do Ibama. Como usa padrão internacional de exploração, a Gethal não derrubou árvores ilegalmente. Sobreviveu até outubro vendendo estoques. Quando eles acabaram, demitiu seus 720 funcionários e saiu do ramo. "Quisemos dar bom exemplo, mas o governo nos tratou como se operássemos na ilegalidade", diz Carlos Alberto Guerreiro, o principal executivo da empresa.

Ao que tudo indica, a companhia não quebrou por ineficiência. Mesmo seguindo as regras do selo verde, ela vinha conseguindo competir com as madeireiras chinesas, que há cinco anos dominam o mercado mundial. Ela se mantinha mesmo operando com margens de lucro muito baixas. O caso da Gethal não é exceção. Neste ano, o Ibama também não concedeu nenhuma autorização para outras sete serrarias detentoras do selo verde, que, juntas, respondem por 90% da produção de madeira certificada da Amazônia. A situação tende a se agravar em 2006. Depois que a Gethal quebrou, o Ibama prometeu desengavetar as autorizações. Mesmo que o órgão cumpra a promessa imediatamente, as madeireiras só terão um mês para retirar da floresta toda a matéria-prima de que precisam. Isso porque o corte é permitido apenas durante a seca, que acaba em dezembro. Pelo menos outras duas empresas estão em situação semelhante à da Gethal. A multinacional Precious Woods deve suspender as atividades nesta semana, quando seus estoques terminam. Desde o ano passado, a produção da Cikel, uma das maiores madeireiras do país, caiu pela metade. Quatrocentos de seus 1 300 empregados foram demitidos. Como a companhia não acumulou madeira suficiente para sobreviver em 2006, as demissões devem continuar. Outras empresas desistiram de esperar pelo Ibama. A Orsa Florestal, por exemplo, conseguiu na Justiça uma liminar que lhe garante o corte legal de madeira. Assim, explora a maior área de manejo sustentado da Amazônia graças a uma medida judicial.

O Ibama acredita que preserva a floresta quando protela a concessão de autorizações. Mas faz o oposto. Ao impedir que empresas sérias prosperem, o órgão abre espaço para devastadores. Hoje, 2 400 madeireiras cometem atrocidades na floresta. Desmatam, derrubam espécies ameaçadas e usam métodos que destroem, pelo menos, metade da vegetação da área onde atuam. Só estão em operação porque o Ibama não tem fiscais suficientes. "Neutralizar o madeireiro que cumpre a lei é uma maneira de favorecer o mercado ilegal, que está cada vez mais aquecido", diz José Natalino Silva, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), outro órgão do governo. O incentivo à ilegalidade produziu estímulos negativos até na população ribeirinha, que aderiu ao comércio ilegal de madeira. Ela avança sobre a floresta sem autorização porque sabe que o governo é incapaz de puni-la. Afirma Claudia Azevedo-Ramos, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam): "O governo os ensina a sobreviver na ilegalidade".
FONTE : REVISTA VEJA, 07 de novembro de 2005